sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

CONFLITO APARENTE DE NORMAS

1.     CONFLITO APARENTE DE NORMAS

Na teoria Geral do Direito o estudo da norma jurídica é de fundamental importância, porque se refere a elemento essencial do direito objetivo. Ao dispor sobre os fatos e consagrar valores, as normas jurídicas são o ponto culminante do processo de elaboração do Direito e o ponto de partida operacional da Dogmática Jurídica, cuja função é sistematizar e descrever a ordem jurídica vigente. No Direito Penal a norma jurídica regula o poder punitivo do Estado, ligando ao crime, como pressuposto, a pena como conseqüência.
Para Mirabete (2009), “a ordem jurídica é constituída de distintas disposições, é ordenada e harmônica. Algumas leis são independentes entre si, outras se coordenam, de forma que se integram ou se excluem reciprocamente. Não raro, precisa o intérprete resolver qual das normas do ordenamento jurídico é a aplicável ao caso”. 
O problema apresenta enorme relevância prática porque, quando aparece, tratando-se de concorrência de preceitos primários das normas incriminadoras, a solução irá ligar o agente a uma ou a diversas sanctiones juris, e as penas nem sempre são iguais, qualitativa e quantitativamente.
Segundo Damásio (2009), “a questão é de aplicação da lei penal, embora a maioria dos autores a situe no concurso de crimes, mais por motivos de natureza prática do que sistemática”.
Quando a um mesmo fato supostamente podem ser aplicadas normas diferentes, da mesma ou de diversas leis penais, surge o que é denominado conflito ou concurso aparente entre normas. Dois são seus pressupostos:
a)    a unidade de fato;
b)    a pluralidade de normas que (aparentemente) identificam o mesmo fato delituoso.
Inexistindo um deles não há que se falar em conflito aparente de normas. Diz-se aparente porque só seria real se a ordem jurídica não resolvesse a questão.
Como é impossível que duas normas incriminadoras venham a incidir sobre um só fato natural, o que é vedado pelo princípio non bis in idem, é indispensável que se verifique qual delas deve ser aplicada no caso concreto.
Embora ainda não se tenham conseguido soluções teóricas para todas as dúvidas sobre o conflito aparente entre normas, a doutrina tem fixado quatro princípios para resolvê-lo: o da especialidade; o da subsidiaridade; o da consunção e da alternatividade.

1.1.   PRINCÍPIPO DA ESPECIALIDADE

O princípio da especialidade consiste na derrogação da lei geral pela especial. Segundo Damásio (2009), “diz-se que uma norma penal incriminadora é especial em relação a outra, geral, quando possui em sua definição legal todos os elementos típicos desta, e mais alguns, de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes, apresentando, por isso, um minus ou um plus de severidade”. A norma é especial quando acrescenta à norma geral um ou vários requisitos. A norma especial, ou seja, a que acresce elemento próprio á descrição legal do crime previsto na geral, prefere esta: lex specialis derogat generali; semper specialia generalibus insut; generi per speciem derogantur.
Afasta-se desta forma, o bis in idem, pois o comportamento do sujeito só é enquadrado na norma incriminadora especial, embora também descrito pela geral.
Nestes casos, há um typus specialis, contendo um “crime específico”, e um typus generalis, descrevendo um “crime genérico”. Aquele prefere a este.
As duas disposições (especial e geral) podem estar contidas na mesma lei ou em leis distintas; podem ter sido postas em vigor ao mesmo tempo ou em ocasiões diversas. É preciso, porém, na relação de generalidade e especialidade entre normas, que sejam contemporâneas, o que pode deixar de ocorrer na consunção.
  Além disso, observa Damásio que, “o princípio da especialidade possui uma característica que o distingue dos demais: a prevalência da norma especial sobre a geral se estabelece in abstracto, pela comparação das definições abstratas contidas nas normas, enquanto os outros exigem um confronto em concreto das leis que descrevem o mesmo fato”.
Ocorre a relação da generalidade e especialidade em certos delitos sui generis, considerados especiais em função de maior ou menor punibilidade ou em relação a determinadas disposições que contêm formas típicas qualificadas ou privilegiadas, em comparação com o typus simplex.
O infanticídio (art.123), por exemplo, é norma especial com relação ao homicídio (art.121), uma vez que, além dos elementos deste, exige que a autora seja a mãe da vítima e esteja sob a influência do estado puerperal e que o ofendido seja recém-nascido. Quando o crime de lesão corporal culposa é praticado na direção de veículo automotor, a norma especial a ser aplicada é a do art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro, que anula, no caso, o art. 129, parágrafo 6º, do Código Penal (lei geral). A adequação ao tipo especial afasta a possibilidade de aplicação do tipo geral.

1.2.    PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIDADE

O princípio da subsidiaridade consiste na anulação da lei subsidiária, que é uma espécie de tipo de reserva, apenas quando inexiste no fato algum dos elementos do tipo geral.
Há relação de primariedade e subsidiaridade entre normas quando descrevem graus de violação do mesmo bem jurídico, de forma que a infração definida pela subsidiária, de menor gravidade que a da principal, é absorvida por esta: Lex primaria derogat legi subsidiariae.
A infração definida pela norma subsidiária, não é só de menor gravidade que a da principal, mas dela se diferencia em relação à maneira de execução, pois é uma parte desta. A figura típica subsidiária está contida na principal.
A conduta punível deve ser analisada em concreto para que se determine o preceito legal em que se enquadra. A aplicabilidade da norma subsidiária e a inaplicabilidade da principal, se for o caso, não resultam da relação lógica e abstrata de uma com a outra, mas do juízo de valor do fato em face delas.
Haverá apenas o crime de ameaça (art.147) quando não é proferida para forçar alguém a não fazer o que a lei permite ou a não fazer o que ela não manda, o que caracteriza o crime de constrangimento ilegal (art. 146), ou a não se submeter à conjunção carnal violenta, o que tipificaria o estupro (art.213) etc. Estes são casos de subsidiaridade tácita ou implícita porque decorrem apenas da falta de adequação típica do fato ao tipo geral. Também ocorre a aplicação da norma subsidiária quando esta prevê expressamente sua incidência no caso de não constituir o fato um crime mais grave (subsidiaridade expressa). Aplica-se o art.132 (perigo para a vida ou à saúde de outrem) quando disparo é efetuado sem que o agente tente homicídio ou cause lesão; ocorre o delito de simulação de casamento (art.239) se o agente não pretende, por exemplo, obter vantagem ilícita do fato, o que consubstanciaria o delito de estelionato ( art.171) etc.

1.3.   PRINCÍPIPO DA CONSUÇÃO: CRIME PROGRESSIVO, CRIME COMPLEXO E PROGRESSÃO CRIMINOSA

O princípio da consunção (ou absorção) consiste na anulação da norma que já está contida em outra; ou seja, na aplicação da lei de âmbito maior, mais gravemente apenada, desprezando a outra, de âmbito menor.
 Ocorre a relação consuntiva, quando um fato definido por uma norma incriminadora é meio necessário ou normal fase de preparação ou execução de outro crime, bem como quando constitui conduta anterior ou posterior do agente, cometida com a mesma finalidade prática atinente àquele crime. Nesses casos, a norma incriminadora que descreve o meio necessário, a normal fase de preparação ou execução de outro crime, ou a conduta anterior ou a posterior, é excluída pela norma a este relativa. Lex consumens derogat legi consumptae.
O comportamento descrito pela norma consuntiva constitui a fase mais avançada na concretização da lesão ao bem jurídico, aplicando-se então, o princípio de que major absorbet minorem. Os fatos não se apresentam em relação de espécie e gênero, mas de minus a plus, de conteúdo a continente, de parte a todo, de meio a fim, de fração a inteiro.
A conduta que se contém na norma consuntiva é de natureza complexional, uma vez que subtende, estruturalmente, espécies criminosas independentes, pois são primárias as leis que as descrevem. Nessa relação situam-se as normas em círculos concêntricos, dos quais o maior se refere à norma consuntiva.
Na relação consuntiva não há o liame lógico que existe na da especialidade. A conclusão é alcançada não em decorrência da comparação entre as figuras típicas abstratas, mas sim pela configuração concreta do caso de que se trata.
Segundo Asúa apud Damásio (2009), a consunção pode produzir-se:
            a) quando as disposições se relacionam de imperfeição a perfeição (atos preparatórios puníveis, tentativa – consunção);
           b) de auxílio a conduta direta ( partícipe – autor);
           c) de minus a plus (crimes progressivos);
           d) de meio a fim (crimes complexos) e
           e) de parte a todo (consunção de fatos anteriores e posteriores).  
Assim entre o crime perfeito e o imperfeito há uma relação de absorção. Daí o crime consumado absorver a tentativa, e esta o incriminado ato preparatório. Uma tentativa pode ser em si mesma um delito punível quando não foi seguida pela consumação, é certo que, quando esta a seguiu, todos os atos executivos que a prepararam e a facilitaram se compenetram com o delito consumado e permanece delito único.
Pode-se dizer o mesmo nos casos em que o legislador considera puníveis os atos preparatórios de um crime como atos executórios de outro.

1.3.1.   CRIME PROGRESSIVO

Existe crime progressivo quando o sujeito para alcançar um resultado, passa por uma conduta inicial que produz um evento menos grave que aquele. O autor desenvolve fases sucessivas, cada uma constituindo um tipo de infração. Num crime, o comportamento descrito pelo núcleo do tipo é o resultado de condutas que se realizam através da passagem de uma figura criminal menos grave para outra de menor gravidade.
Pode ocorrer a absorção no crime progressivo, como nas hipóteses de homicídio (art.121), que anula a aplicação do art. 129 (lesões corporais); de crime de lesões corporais e de tentativa de homicídio que consomem o crime de perigo para a vida ou à saúde de outrem (art.132) etc. Já se decidiu pela absorção do porte ilegal de arma utilizada na prática de homicídio e de lesões corporais.

1.3.2.   CRIME COMPLEXO

Há crime complexo quando a lei considera como elemento ou circunstancias do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes (CP, art.101). É o que resulta da fusão de dois ou mais delitos autônomos, que passam a funcionar como elementares ou circunstanciais no tipo complexo
Pode ocorrer que o tipo consumido seja meio de um crime maior, como no caso do delito de violação de domicílio (art.150), praticado para proceder-se ao furto (art.155) é possível que o crime menor seja componente de outro, como no caso de crime complexo: o de roubo (art. 157) inclui o de furto (art.155) e o de lesões corporais (art.129) ou ameaça (art.147).

1.3.3.   PROGRESSÃO CRIMINOSA

Há progressão criminosa quando um tipo, já realizado, ainda se concretiza através da prática sucessiva de outra figura típica em que se encontra implicada. Trata-se de conceito diverso e de maior amplitude que o de crime progressivo. E isto porque, se este advém de relação contida na estrutura interna da figura típica, a progressão delitiva tem sua razão de ser na forma de concretização do tipo abstrato.
Segundo Damásio (2009), “O crime progressivo pressupõe um só fato; a progressão criminosa uma pluralidade de fatos cometidos de forma continuada. Sob o aspecto subjetivo do sujeito, existe no crime progressivo, desde o início, a vontade de cometer a infração de maior gravidade; na progressão criminosa a intenção inicial é praticar o delito menor, e só depois é que, no mesmo iter criminis, resolve ele cometer a infração mais grave”
As condutas absorvíveis, na relação consuntiva, em hipóteses de progressão criminosa podem ser classificadas em três grupos:
1º) da progressão criminosa em sentido estrito
2º) do fato antecedente não punível
3º) do fato sucessível não punível
Ocorre a progressão criminosa em sentido estrito quando a hipótese que seria um crime progressivo se desvincula no tempo. Ex: “A” quer, primeiramente, somente ferir, e, logo após lesar a integridade física da vítima, determina matar e a mata (o homicídio absorve a lesão corporal). “B" começa molestando uma pessoa (LCP, art.65) e depois decide injuriá-la (CP, art.140). A contravenção é absorvida pelo crime.
Observa-se o antefactum não punível quando uma conduta menos grave precede a uma mais grave como meio necessário ou normal de realização. A primeira é consumida pela segunda, em face do princípio id quod plerumque accidit. Exige-se que haja ofensa ao mesmo bem jurídico e pertença ao mesmo sujeito. Em conseqüência da absorção, o antefato torna-se um indiferente penal. É o ocorre no caso de o sujeito ter em seu poder “instrumentos empregados usualmente na prática do crime de furto” (LCP, art.25) e, em seguida, praticar uma subtração punível. O detentor de chaves falsas ou gazuas, que se serve desses meios para praticar um furto, responde somente pela subtração, em que fica consumida a contravenção.
Há o postfactum não punível quando um fato posterior menos grave é praticado contra o mesmo bem jurídico e do mesmo sujeito, para a utilização de um fato antecedente e mais grave, e disso para deste tirar proveito, mas sem causar ofensa. Sendo assim, se após o furto o ladrão destrói a coisa subtraída, só responde pelo furtum rei, e não pelo dano (CP, art.163). Neste caso, a lesão ao interesse jurídico causada pela conduta precedente torna indiferente o crime de dano.

1.4.   PRINCÍPIPO DA ALTERNATIVIDADE

O princípio da alternatividade indica que o agente só será punido por uma das modalidades inscritas nos chamados crimes de ação múltipla, embora possa praticar duas ou mais condutas do mesmo tipo penal. Segundo este princípio, a norma penal que vários fatos alternativamente, como modalidades de um mesmo crime, só é aplicável uma vez, ainda quando os ditos fatos são praticados pelo mesmo sujeito, sucessivamente. Ocorre nos crimes de ação múltipla ou conteúdo variado.
Exemplificando: se instigar alguém ao suicídio e, em seguida, auxiliar a vítima na prática do ato, o agente somente responderá por instigação ou auxílio, e não pelas duas condutas. O mesmo ocorrerá nos casos dos arts. 150, 161 do CP, 33 da lei nº 11.343 (nova lei de tóxicos) etc.             


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:


NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 32ª Ed, 2010.

JESUS, Damásio E de. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 30ª Ed., 2009.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal, volume1: parte geral. São Paulo: Atlas, 25ª Ed., 2009.

REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2009.


CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, vol.1, parte geral. São Paulo: Saraiva, 14ª Ed., 2010. 

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