1.
CONFLITO APARENTE DE NORMAS
Na teoria Geral do Direito
o estudo da norma jurídica é de fundamental importância, porque se refere a
elemento essencial do direito objetivo. Ao dispor sobre os fatos e consagrar
valores, as normas jurídicas são o ponto culminante do processo de elaboração
do Direito e o ponto de partida operacional da Dogmática Jurídica, cuja função
é sistematizar e descrever a ordem jurídica vigente. No Direito Penal a norma
jurídica regula o poder punitivo do Estado, ligando ao crime, como pressuposto,
a pena como conseqüência.
Para Mirabete (2009), “a
ordem jurídica é constituída de distintas disposições, é ordenada e harmônica.
Algumas leis são independentes entre si, outras se coordenam, de forma que se
integram ou se excluem reciprocamente. Não raro, precisa o intérprete resolver
qual das normas do ordenamento jurídico é a aplicável ao caso”.
O problema apresenta
enorme relevância prática porque, quando aparece, tratando-se de concorrência
de preceitos primários das normas incriminadoras, a solução irá ligar o agente
a uma ou a diversas sanctiones juris,
e as penas nem sempre são iguais, qualitativa e quantitativamente.
Segundo Damásio (2009), “a
questão é de aplicação da lei penal, embora a maioria dos autores a situe no
concurso de crimes, mais por motivos de natureza prática do que sistemática”.
Quando a um mesmo fato
supostamente podem ser aplicadas normas diferentes, da mesma ou de diversas
leis penais, surge o que é denominado conflito ou concurso aparente entre
normas. Dois são seus pressupostos:
a)
a
unidade de fato;
b)
a
pluralidade de normas que (aparentemente) identificam o mesmo fato delituoso.
Inexistindo um deles não
há que se falar em conflito aparente de normas. Diz-se aparente porque só seria
real se a ordem jurídica não resolvesse a questão.
Como é impossível que duas
normas incriminadoras venham a incidir sobre um só fato natural, o que é vedado
pelo princípio non bis in idem, é
indispensável que se verifique qual delas deve ser aplicada no caso concreto.
Embora ainda não se tenham
conseguido soluções teóricas para todas as dúvidas sobre o conflito aparente
entre normas, a doutrina tem fixado quatro princípios para resolvê-lo: o da
especialidade; o da subsidiaridade; o da consunção e da alternatividade.
1.1. PRINCÍPIPO DA ESPECIALIDADE
O princípio da
especialidade consiste na derrogação da lei geral pela especial. Segundo
Damásio (2009), “diz-se que uma norma penal incriminadora é especial em relação
a outra, geral, quando possui em sua
definição legal todos os elementos típicos desta, e mais alguns, de natureza
objetiva ou subjetiva, denominados especializantes,
apresentando, por isso, um minus ou
um plus de severidade”. A norma é
especial quando acrescenta à norma geral um ou vários requisitos. A norma especial,
ou seja, a que acresce elemento próprio á descrição legal do crime previsto na
geral, prefere esta: lex specialis derogat generali; semper specialia
generalibus insut; generi per speciem derogantur.
Afasta-se desta forma, o bis in idem, pois o comportamento do
sujeito só é enquadrado na norma incriminadora especial, embora também descrito
pela geral.
Nestes casos, há um typus specialis, contendo um “crime
específico”, e um typus generalis, descrevendo
um “crime genérico”. Aquele prefere a este.
As duas disposições
(especial e geral) podem estar contidas na mesma lei ou em leis distintas;
podem ter sido postas em vigor ao mesmo tempo ou em ocasiões diversas. É
preciso, porém, na relação de generalidade e especialidade entre normas, que
sejam contemporâneas, o que pode deixar de ocorrer na consunção.
Além
disso, observa Damásio que, “o princípio da especialidade possui uma
característica que o distingue dos demais: a prevalência da norma especial
sobre a geral se estabelece in abstracto,
pela comparação das definições abstratas contidas nas normas, enquanto os
outros exigem um confronto em concreto
das leis que descrevem o mesmo fato”.
Ocorre a relação da
generalidade e especialidade em certos delitos sui generis, considerados especiais em função de maior ou menor
punibilidade ou em relação a determinadas disposições que contêm formas típicas
qualificadas ou privilegiadas, em comparação com o typus simplex.
O infanticídio (art.123),
por exemplo, é norma especial com relação ao homicídio (art.121), uma vez que,
além dos elementos deste, exige que a autora seja a mãe da vítima e esteja sob
a influência do estado puerperal e que o ofendido seja recém-nascido. Quando o
crime de lesão corporal culposa é praticado na direção de veículo automotor, a
norma especial a ser aplicada é a do art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro,
que anula, no caso, o art. 129, parágrafo 6º, do Código Penal (lei geral). A
adequação ao tipo especial afasta a possibilidade de aplicação do tipo geral.
1.2. PRINCÍPIO
DA SUBSIDIARIDADE
O princípio da
subsidiaridade consiste na anulação da lei subsidiária, que é uma espécie de
tipo de reserva, apenas quando inexiste no fato algum dos elementos do tipo
geral.
Há relação de primariedade
e subsidiaridade entre normas quando descrevem graus de violação do mesmo bem
jurídico, de forma que a infração definida pela subsidiária, de menor gravidade
que a da principal, é absorvida por esta: Lex
primaria derogat legi subsidiariae.
A infração definida pela
norma subsidiária, não é só de menor gravidade que a da principal, mas dela se
diferencia em relação à maneira de execução, pois é uma parte desta. A figura
típica subsidiária está contida na principal.
A conduta punível deve ser
analisada em concreto para que se determine o preceito legal em que se enquadra.
A aplicabilidade da norma subsidiária e a inaplicabilidade da principal, se for
o caso, não resultam da relação lógica e abstrata de uma com a outra, mas do
juízo de valor do fato em face delas.
Haverá apenas o crime de
ameaça (art.147) quando não é proferida para forçar alguém a não fazer o que a
lei permite ou a não fazer o que ela não manda, o que caracteriza o crime de
constrangimento ilegal (art. 146), ou a não se submeter à conjunção carnal violenta,
o que tipificaria o estupro (art.213) etc. Estes são casos de subsidiaridade
tácita ou implícita porque decorrem apenas da falta de adequação típica do fato
ao tipo geral. Também ocorre a aplicação da norma subsidiária quando esta prevê
expressamente sua incidência no caso de não constituir o fato um crime mais
grave (subsidiaridade expressa). Aplica-se o art.132 (perigo para a vida ou à
saúde de outrem) quando disparo é efetuado sem que o agente tente homicídio ou
cause lesão; ocorre o delito de simulação de casamento (art.239) se o agente
não pretende, por exemplo, obter vantagem ilícita do fato, o que
consubstanciaria o delito de estelionato ( art.171) etc.
1.3. PRINCÍPIPO DA CONSUÇÃO: CRIME PROGRESSIVO,
CRIME COMPLEXO E PROGRESSÃO CRIMINOSA
O princípio da consunção
(ou absorção) consiste na anulação da norma que já está contida em outra; ou
seja, na aplicação da lei de âmbito maior, mais gravemente apenada, desprezando
a outra, de âmbito menor.
Ocorre a relação consuntiva, quando um fato
definido por uma norma incriminadora é meio necessário ou normal fase de
preparação ou execução de outro crime, bem como quando constitui conduta
anterior ou posterior do agente, cometida com a mesma finalidade prática
atinente àquele crime. Nesses casos, a norma incriminadora que descreve o meio
necessário, a normal fase de preparação ou execução de outro crime, ou a
conduta anterior ou a posterior, é excluída pela norma a este relativa. Lex consumens derogat legi consumptae.
O comportamento descrito
pela norma consuntiva constitui a fase mais avançada na concretização da lesão
ao bem jurídico, aplicando-se então, o princípio de que major absorbet minorem. Os fatos não se apresentam em relação de
espécie e gênero, mas de minus a plus, de conteúdo a continente, de parte
a todo, de meio a fim, de fração a inteiro.
A conduta que se contém na
norma consuntiva é de natureza complexional, uma vez que subtende,
estruturalmente, espécies criminosas independentes, pois são primárias as leis
que as descrevem. Nessa relação situam-se as normas em círculos concêntricos,
dos quais o maior se refere à norma consuntiva.
Na relação consuntiva não
há o liame lógico que existe na da especialidade. A conclusão é alcançada não
em decorrência da comparação entre as figuras típicas abstratas, mas sim pela
configuração concreta do caso de que se trata.
Segundo Asúa apud Damásio
(2009), a consunção pode produzir-se:
a) quando as disposições se
relacionam de imperfeição a perfeição (atos preparatórios puníveis, tentativa –
consunção);
b) de auxílio a conduta direta ( partícipe
– autor);
c) de minus a plus (crimes
progressivos);
d) de meio a fim (crimes complexos)
e
e) de parte a todo (consunção de
fatos anteriores e posteriores).
Assim entre o crime
perfeito e o imperfeito há uma relação de absorção. Daí o crime consumado
absorver a tentativa, e esta o incriminado ato preparatório. Uma tentativa pode
ser em si mesma um delito punível quando não foi seguida pela consumação, é
certo que, quando esta a seguiu, todos os atos executivos que a prepararam e a
facilitaram se compenetram com o delito consumado e permanece delito único.
Pode-se dizer o mesmo nos
casos em que o legislador considera puníveis os atos preparatórios de um crime
como atos executórios de outro.
1.3.1.
CRIME
PROGRESSIVO
Existe crime progressivo
quando o sujeito para alcançar um resultado, passa por uma conduta inicial que
produz um evento menos grave que aquele. O autor desenvolve fases sucessivas,
cada uma constituindo um tipo de infração. Num crime, o comportamento descrito
pelo núcleo do tipo é o resultado de condutas que se realizam através da
passagem de uma figura criminal menos grave para outra de menor gravidade.
Pode ocorrer a absorção no
crime progressivo, como nas hipóteses de homicídio (art.121), que anula a aplicação
do art. 129 (lesões corporais); de crime de lesões corporais e de tentativa de
homicídio que consomem o crime de perigo para a vida ou à saúde de outrem
(art.132) etc. Já se decidiu pela absorção do porte ilegal de arma utilizada na
prática de homicídio e de lesões corporais.
1.3.2.
CRIME
COMPLEXO
Há crime complexo quando a
lei considera como elemento ou circunstancias do tipo legal fatos que, por si
mesmos, constituem crimes (CP, art.101). É o que resulta da fusão de dois ou
mais delitos autônomos, que passam a funcionar como elementares ou
circunstanciais no tipo complexo
Pode ocorrer que o tipo
consumido seja meio de um crime maior, como no caso do delito de violação de
domicílio (art.150), praticado para proceder-se ao furto (art.155) é possível que
o crime menor seja componente de outro, como no caso de crime complexo: o de
roubo (art. 157) inclui o de furto (art.155) e o de lesões corporais (art.129)
ou ameaça (art.147).
1.3.3.
PROGRESSÃO
CRIMINOSA
Há progressão criminosa
quando um tipo, já realizado, ainda se concretiza através da prática sucessiva
de outra figura típica em que se encontra implicada. Trata-se de conceito
diverso e de maior amplitude que o de crime progressivo. E isto porque, se este
advém de relação contida na estrutura interna da figura típica, a progressão
delitiva tem sua razão de ser na forma de concretização do tipo abstrato.
Segundo Damásio (2009), “O
crime progressivo pressupõe um só fato; a progressão criminosa uma pluralidade
de fatos cometidos de forma continuada. Sob o aspecto subjetivo do sujeito,
existe no crime progressivo, desde o início, a vontade de cometer a infração de
maior gravidade; na progressão criminosa a intenção inicial é praticar o delito
menor, e só depois é que, no mesmo iter
criminis, resolve ele cometer a infração mais grave”
As condutas absorvíveis,
na relação consuntiva, em hipóteses de progressão criminosa podem ser
classificadas em três grupos:
1º) da progressão
criminosa em sentido estrito
2º) do fato antecedente
não punível
3º) do fato sucessível não
punível
Ocorre a progressão
criminosa em sentido estrito quando a hipótese que seria um crime progressivo
se desvincula no tempo. Ex: “A” quer, primeiramente, somente ferir, e, logo
após lesar a integridade física da vítima, determina matar e a mata (o homicídio
absorve a lesão corporal). “B" começa molestando uma pessoa (LCP, art.65)
e depois decide injuriá-la (CP, art.140). A contravenção é absorvida pelo
crime.
Observa-se o antefactum não punível quando uma
conduta menos grave precede a uma mais grave como meio necessário ou normal de
realização. A primeira é consumida pela segunda, em face do princípio id quod plerumque accidit. Exige-se que
haja ofensa ao mesmo bem jurídico e pertença ao mesmo sujeito. Em conseqüência
da absorção, o antefato torna-se um indiferente penal. É o ocorre no caso de o
sujeito ter em seu poder “instrumentos empregados usualmente na prática do
crime de furto” (LCP, art.25) e, em seguida, praticar uma subtração punível. O
detentor de chaves falsas ou gazuas, que se serve desses meios para praticar um
furto, responde somente pela subtração, em que fica consumida a contravenção.
Há o postfactum não punível quando um fato posterior menos grave é
praticado contra o mesmo bem jurídico e do mesmo sujeito, para a utilização de
um fato antecedente e mais grave, e disso para deste tirar proveito, mas sem
causar ofensa. Sendo assim, se após o furto o ladrão destrói a coisa subtraída,
só responde pelo furtum rei, e não
pelo dano (CP, art.163). Neste caso, a lesão ao interesse jurídico causada pela
conduta precedente torna indiferente o crime de dano.
1.4. PRINCÍPIPO DA ALTERNATIVIDADE
O princípio da
alternatividade indica que o agente só será punido por uma das modalidades
inscritas nos chamados crimes de ação múltipla, embora possa praticar duas ou
mais condutas do mesmo tipo penal. Segundo este princípio, a norma penal que
vários fatos alternativamente, como modalidades de um mesmo crime, só é
aplicável uma vez, ainda quando os ditos fatos são praticados pelo mesmo
sujeito, sucessivamente. Ocorre nos crimes de ação múltipla ou conteúdo
variado.
Exemplificando: se
instigar alguém ao suicídio e, em seguida, auxiliar a vítima na prática do ato,
o agente somente responderá por instigação ou auxílio, e não pelas duas
condutas. O mesmo ocorrerá nos casos dos arts. 150, 161 do CP, 33 da lei nº
11.343 (nova lei de tóxicos) etc.
BIBLIOGRAFIA
CONSULTADA:
NADER,
Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 32ª Ed, 2010.
JESUS,
Damásio E de. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 30ª Ed., 2009.
MIRABETE, Julio
Fabbrini. Manual de direito penal, volume1: parte geral. São Paulo: Atlas, 25ª
Ed., 2009.
REALE
JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
CAPEZ,
Fernando. Curso de direito penal, vol.1, parte geral. São Paulo: Saraiva, 14ª
Ed., 2010.
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