Resumidamente, o sistema garantista de Ferrajoli, representado pela sigla SG, é composto por dez axiomas, conexos e não deriváveis, que dividem-se em garantias penais e processuais penais que, representadas por equações, visam limitar o arbítrio punitivo do Estado, tanto na cominação, quanto na aplicação da pena.
Desse modo, são garantias penais: nulla poena sine crimine (A1), denominada como princípio da retributividade; nullum crimen sine lege (A2), intitulada como princípio da legalidade em sentido lato ou estrito; nulla lex (poenalis) sine necessitate (A3) chamada de princípio da necessidade ou economia do direito penal; nulla necessita sine iniuria (A4), traduzida pelo princípio da lesividade ou ofensividade do ato; nulla iniuria sine actione (A5), que corresponde à materialidade ou exterioridade da ação; e nulla actio sine culpa (A6), que indica o princípio da culpabilidade ou responsabilidade pessoal.
As garantias processuais, por seu turno, são compostas pela nulla culpa sine iudicio (A7), que reveste o princípio da jurisdicionariedade em sentido lato ou estrito;pela nullum iudicium sine accusatione (A8), que denota o princípio acusatório ou da separação do juiz e acusação;pela nulla accusatio sine probatione (A9)que consiste no princípio ônus da prova ou da verificação e, por fim, pela nulla probatio sine defensione (A10) que enuncia o princípio do contraditório, também conhecido como da defesa ou da falseabilidade [17].
O atendimento de tais axiomas que, combinados podem expressar até 75 teoremas [18], revelam o grau de garantismo de cada sistema, pois não basta que as garantias estejam previstas no texto constitucional, mas sim que sejam efetivadas, sendo inadmitida a interferência de qualquer legislação ordinária ou de cunho inquisitorial sobre os direitos fundamentais que delas decorrem [19].
AS GARANTIAS PENAIS E SEUS DERIVADOS
O princípio da retributividade é a primeira e mais singela garantia penal esposada por Ferrajoli. Traduzido pela máxima nulla poena sine crimine, indica que a pena só pode ser aplicada na ocorrência do seu pressuposto, isto é, o delito. Para tanto, a pena exerceria uma função retributiva e não preventiva, eis que se optasse pela segunda alternativa, revelar-se-ia acolhedora de uma política inquisitorial e, portanto, antigarantista, haja vista que
La garantía del carácter retributivo de la pena – en virtud de la cual nadie puede ser castigado más que por lo que ha hecho (y no por lo que es) – sirve precisamente para excluir, al margen de cualquier posible finalidad preventiva o de cualquier otro modo utilitarista, el castigo del inocente aun cuando se le considere por sí malvado, desviado, peligroso, sospechoso o proclive al delito, etc [20].
Contudo, alerta o autor italiano que a prática de um ato descrito como crime não é suficiente para acionar a punição, visto que da análise do caso concreto, sob a observância das demais garantias, uma excludente poderá ser encontrada [21].
Doravante, traz-se a lume as concepções substancialista e formalista, as quais pretendem explicar o que é ou o quê deve ser concebido como delito.
A primeira acepção, também denominada quia peccatum, é radicalmente repudiada pelo sistema garantista, eis que ao acoplar ao delito elementos subjetivos, ligados à moral e à natureza, ceifa qualquer possibilidade de refutação. Sinteticamente, menciona Ferrajoli que "se trata, en efecto, de una técnica punitiva que criminaliza inmediatamente la interioridad o, peor, la identidad subjetiva del reo y que, por ello, tiene un carácter explícitamente discriminatorio, además de antiliberal [22]".
Constata-se, então, que a aludida vertente fere frontalmente o princípio da secularização dando guarida a decisões inquisitoriais motivadas por critérios extraordinários ao fato.
A segunda concepção, também chamada quia prohibitum, determina que o texto legal atenha-se a dados objetivos ao descrever o tipo penal, a fim de propiciar a sua aferição no lastro probatório. Desnudando-se de aspectos morais, a criminalização primária resultaria num suporte racional, atuando como instrumento limitador do Estado e, ao mesmo tempo, desencadeador dos demais axiomas garantistas [23].
Destarte, é manifesta a importância do princípio da legalidade na estruturação da ordem jurídica e no controle interventivo penal. Todavia, cabe esclarecer que o sistema de Ferrajoli não se satisfaz com a diretiva em sentido lato, também denominada mera legalidade, mas sim com o princípio em sentido estrito.
Consoante o princípio da mera legalidade, toda norma vigente implica punição, independentemente de seu conteúdo. Tal visão, extremamente mecanicista, é contrária aos preceitos garantistas, posto que o intérprete, ao não questionar a validade da norma, alimenta o ciclo de desigualdade. Contudo, como fiel defensora da vigência, contribuiu para o direito penal, inserindo ao sistema os corolários da irretroatividade da lei e da ultra-atividade [24].
No que tange ao princípio da estrita legalidade, cumpre ao magistrado, através de uma filtragem axiológica, analisar a validade da norma vigente, a fim de anulá-la ou, então, deixar de aplicá-la quando for considerada inválida [25]. Nesse momento, as concepções substancialistas seriam rechaçadas de plano, haja vista que a diretiva veda inclusive a analogia in malam partem [26]. As formalistas, por seu turno, seriam apontadas como válidas, eis que são internalizadas pela norma regulativa que dispõe sobre o ato.
Desse raciocínio, surge o princípio da regulatividade a fim de vedar as normas constitutivas ou quase-constitutivas que, por serem características de direito penal máximo, apregoam a discriminação e a desigualdade [27]. Por este aspecto, Ferrajoli comenta que no decorrer da história
[...] han cambiado, obviamente, los tipos y las técnicas constitutivas: no trata ya de la previsión directamente constitutiva de determinadas categorías de personas como desviadas (brujas, herejes, judíos, etc.), sino de la relevancia que las leyes cuasi-constitutivas conceden a condiciones personales cuya comprobación queda confiada a normas constitutivas. Los tipos más importantes en los que se explicita este moderno paradigma cuasi-constitutivo son los de la ‘reincidencia’, el ‘vagabundo’ y la ‘peligrosidad’ [28].
Da união dos axiomas da legalidade e da retributividade, tem-se o princípio da proporcionalidade, revelado pela máxima poena debet commensurari delicto. De acordo com o corolário, a resposta penal deve ser proporcional ao crime cometido, tanto na fase da predeterminação quanto nas fases da determinação e pós-determinação da pena.
Na predeterminação, o legislador deve guiar-se por critérios objetivos que propiciem a falseabilidade, como a lesividade e a culpabilidade da ação praticada, para que a pena cominada não seja onerosa ou tão mínima a ponto de não intimidar o indivíduo. Com relação à determinação da pena, cabe ao juiz analisar o caso concreto de acordo com as peculiaridades do ato, como a responsabilidade subjetiva e a extensão do dano, a fim de que a decisão seja fundamentada na sua verificabilidade. No que tange à pós-determinação, esta ocorre na execução da pena, com a autorização de benefícios ou imposição de gravames ao detento. Tal fase revela-se inquisitorial, uma vez que os procedimentos baseiam-se em uma avaliação de disciplina cujos parâmetros são contrários às regras que norteiam o convívio social [29].
O princípio da necessidadeou da economia do direito penal possui uma íntima ligação com o princípio da proporcionalidade, eis que considera a certeza da punição, ainda que branda, um estímulo coercitivo mais eficaz do que previsão de severas penas. Para tanto, visa coibir a violência institucional por meio da minimização das penas e das normas, salvaguardando as garantias fundamentais do agente, pois "[...] un estado que mata, que tortura, que humilla a um ciudadano no sólo pierde cualquier legitimidad, sino que contradice su razón de ser, poniéndose al nivel de los mismos delincuentes [30]".
A quarta equação garantista é o cerne do direito penal. Vinculada ao axioma retro, o princípio da lesividade afasta a incidência normativa e, por conseguinte, repressiva sobre a conduta interna do autor, determinando que somente lesões a bens jurídicos fundamentais sejam consignadas no texto penal [31]. Por este viés, prima pela despenalização de contravenções, delitos bagatelares e de desobediência, deixando a cargo do direito penal somente as penas privativa de liberdade e restritiva de direitos, evitando etiquetamentos desnecessários.
Fundada na laicização do Estado, o princípio da materialidade firma-se na objetividade, devendo ser observado o nexo causal entre a ação externa e o resultado como pressuposto da pena. Desse modo, preconiza ao agente "[...] el derecho de ser uno mismo y a seguir siéndolo – esto es, el derecho a libertad interior y a la propia identidad, malvada, inmoral, o peligrosa [32]", revelando-se antigarantista a punição amparada na imaterialidade de preceitos como reincidência ou delinqüência habitual [33].
Todavia, a exterioridade da ação lesiva não é suficiente, eis que a pena somente poderá ser aplicada se também for comprovada a responsabilidade subjetiva do agente imputável. Nesta esteira surge o princípio da culpabilidade que, por ser o axioma mais recente na história da civilização, ainda encontra problemas, pois além da culpabilidade não ser mensurável, alguns sistemas insistem em recobri-la de critérios ético-biológicos que propiciam o juízo de valor. Atento à questão, o mestre italiano propõe que a culpabilidade seja aferida pelo ato criminoso praticado, eis que no sistema garantista
[...] no tienen sitio ni la categoría peligrosidad ni cualquier otra tipología subjetiva o de autor elaboradas por la criminología antropológica o eticista, tales como la capacidad criminal, la reincidencia, la tendencia a delinquir, la inmoralidad o la deslealtad [34].
Neste sentido, lamenta que as codificações penais ainda prevejam a reincidência, eis que tal instituto "[...] es un modo de ser más que un modo de actuar, que actúa, indebidamente, como un sustitutivo de la culpabilidad en el que queda expresada la actual subjetivización del derecho penal
[35]", constituindo-se, desse modo, numa "[...] homenaje a la equivalencia premoderna entre delito y pecado [...] [36]".
Encerrada a breve abordagem acerca das garantias penais, passa-se às processuais, responsáveis pela instrumentalização do sistema garantista.
AS GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS
Considerando que o objetivo crucial do processo penal é o resguardo da liberdade negativa perseguida pela lesiva teia do sistema penal, Ferrajoli, com vistas a salvaguardar o aludido direito fundamental, insere em seu complexo sistema três axiomas, os quais são expressos pela nulla culpa sine iudicio (A7), pela nullum iudicium sine accusatione (A8),pela nulla accusatio sine probatione (A9) epela nulla probatio sine defensione (A10) [37].
O princípio da jurisdicionariedade se divide nos sentido lato e estrito. Enquanto o lato sustenta que não há "[...] culpa sin juicio (axioma 7) [38]", o estrito abrange todos os demais axiomas em prol do controle punitivo, primando pela presunção da inocência [39].
Neste diapasão, o princípio da estrita jurisdicionariedade assenta que o julgador deve apreciar as provas de acusação e de defesa cunhadas em aspectos verificáveis, evitando assim, que a decisão seja motivada por resquícios inquisitoriais, pois conforme Ferrajoli
[...] el objetivo justificador del proceso penal se identifica con la garantía de las ‘libertades’ de los ciudadanos, a través de la garantía de la ‘verdad’ – una verdad no caída del cielo, sino obtenida mediante pruebas y refutaciones – frente al abuso y el error. Es precisamente esta doble función garantista la que confiere valor político e intelectual a la profesión del juez, exigiendo de él tolerancia para las razones controvertidas, atención y control sobre todas las hipótesis y las contrahipótesis en conflicto, imparcialidad frente a la contienda, prudencia, equilibrio, ponderación y duda como hábito profesional y como estilo intelectual [40].
Por este viés, é manifesta a importância do princípio acusatório que, por assentar-se no contraditório e na imparcialidade do juiz, garante a isonomia entre as partes [41].
O princípio do ônus da prova, por seu turno, que corresponde à equação A9, determina à acusação a tarefa de comprovar a culpa do réu, mediante provas válidas que contenham critérios que possam ser contestados, eis que a inocência, preceito reitor de limitação das regras probatórias, é presumida [42], como assevera in verbis: "la culpa y no la inocencia debe ser demonstrada; y es la prueba de la culpa – y no la de la inocencia, que se presume desde el principio – la que forma el objeto de juicio [43]".
Desse modo, depreende-se que tal diretiva surge como ferramenta crucial no livre convencimento motivado do magistrado, visto que a fundamentação da decisão deve versar somente sobre provas a ele apresentadas, cristalizando, portanto, a incompatibilidade do ativismo probatório, seja ele subsidiário ou supletivo, com a terzietà [44].
Por este viés,La garantía de la separación, así entendida, representa, por una parte, una condición esencial de la imparcialidad (terzietà) del juez respecto a las partes de la causa, que, […], es la primera de las garantías orgánicas que definen la figura del juez; por otra, un presupuesto de la ‘carga de la imputación y de la prueba’, que pesan sobre la acusación, […] son las primeras garantías procesales del juicio [45].
Nesta linha, sustenta o italiano que a verdade real, por inalcançável, é uma ingenuidad epistemológica das doutrinas jurídicas. O processo penal deve guiar-se, portanto, pela verdade processual, a qual funciona como um princípio regulativo e limitador na jurisdição, consubstanciando-se num modelo formalista que, por sua vez, somente é efetivado com a observância das demais garantias [46].
Atendido o princípio supramencionado, advém o princípio do contraditório que constitui a essência do sistema acusatório. Ausente em modelos inquisitoriais, este último axioma imprime uma tonalidade democrática ao sistema garantista, eis que ao assegurar à defesa a refutação da integralidade das provas condenatórias e dos argumentos explanados pela acusação, garante a paridade de armas, coibindo implicitamente o juízo de valor [47
Leia mais: http://jus.com.br/artigos/17878/a-teoria-do-garantismo-penal-em-questao#ixzz3RxpkgS6V
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